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Conta a Mia, conta o Pedro, no jogo do esconde esconde, contam com as mãos contra a pedra da casa, os olhos: ora fechados ora abertos à batota, os pés – pequenos e irrequietos – sobre as pedras da calçada.
– Calma, devagar – ouvem-se os pais.
Mas a calçada parece moldar-se aos seus pés e acolhe-los, sem deslize, a cada pouso repentino e traquina. E se ela falasse responderia, tranquilizando os pais, que desde do século XII e tempos medievais acolhe pés de todos os tamanhos, de alguns até acompanhou o crescimento e assim foi contando o tempo, pelo tempo que demoram os pés dos seus a crescer.
Nos intervalos das brincadeiras de criança ouvimos outras histórias, na voz de Margarida Francisco, que nos guia aldeia acima. Aponta-nos a casa – junto à Igreja da Misericórdia – e fala-nos da lenda da Dama dos pés de cabra, que reza assim: Dona Lôpa e sua criada, viviam nesta casa. Certo dia, Santo António, disfarçado de mendigo, bateu à sua porta e avisou-a que a sua criada era o diabo. Ao ver a incredulidade de D. Lôpa, Santo António disse-lhe que cobrisse o chão de cinza e assim veria com os seus próprios olhos. Assim fez e, no dia seguinte, com os primeiros raios de sol, estavam os pés de cabra, bem recortados, no chão. E assim, o diabo, que estava prestes a somar mais uma alma, fugiu pela floresta e abandonou a casa. Mas, na cornija da casa, lá está a cabeça de cabra, para que a lenda nunca adormeça.
Subimos a aldeia, pelo burgo medieval, e somamos famílias, à família Lôpa juntam-se as famílias Corte-Real, Brandão e Melo e dos Pinas, com os seus solares. Os nomes remetem-nos para a burguesia de outros tempos e o que nos chega aos olhos mantém a coerência deste museu a céu aberto, sem vestígios de modernidades que poluiriam o património histórico que aqui fez casa.
Chegamos ao Pelourinho e se já foi lugar de castigos públicos e exposição dos infractores, hoje foi lugar de crianças a subi-lo e desce-lo, a fazer do seu granito assento, na boa ignorância dos outros tempos. Também neste largo do Pelourinho, está o fórum, uma espécie de mesa redonda, onde se reuniam os homens bons da aldeia para governar, decidindo – ali – sobre todas as coisas importantes da sua aldeia.
Linhares é feito de gente boa e, acreditamos, a bondade e o reconhecimento do outro aprende-se e transmite-se ao longo das muitas das gerações que cabem em tantos séculos de história, e também ela deve ser vivida como património histórico. E isto sente-se no olhar daqueles que vão passando por nós, nos bons dias e boas tardes que nos oferecem enquanto nos passeamos pela aldeia, mas também a história de Linhares conta desta bondade e solidariedade, com a segunda casa dos Brandão e Melo que foi transformada em casa de apoio a pobres, doentes e peregrinos e a todos, os que, de passagem ou não, precisassem de abrigo.
À esquerda uma ruela estreita, de escadas incertas e a placa diz: Rua da Cadeia. As janelas, com as suas grades, continuam a contar que ali foi lugar de reclusão medieval, tendo mais tarde dado lugar à escola primária feminina e residência de professores, pertencendo hoje às instalações da Junta de Freguesia de Linhares.
Nos traços do burgo medieval encontramos a Rua do Passadiço, a cabeça baixa-se para atravessar o arco côncavo que marca a passagem. Entrar aqui é reviver judiarias, não as do Pedro e da Mia, mas antigas e verdadeiras. Entrar aqui é percorrer os mesmos caminhos da entrada para a judiaria medieval de Linhares, revelando as discriminações religiosas históricas que também fazem parte do património cultural português. Era aqui que se juntavam os judeus, vivendo em casas contíguas numa espécie de micro comunidade e procurando passarem despercebidos. O desgaste acentuado das pedras da calçada numa tão pequena rua faz suspeitar que por ali existia uma sinagoga camuflada pelas janelas manuelinas.
Pelo caminho percebem-se cruzes desenhadas nas pedras de muitas das casas. De todas as vezes que uma família judia era descoberta a cruz era desenhada e a sua vida escrutinada por toda a comunidade, ao aceitá-lo, todos os elementos da família se renovavam em cristão-novos, ou pelo menos era assim que queriam que a vizinhança pensasse não se sabendo as orações que eram praticadas no segredo dos seus lares. E isto tudo acontece quase ao lado daquelas que foram a casa do padre e do bispo, no beco da casa paroquial.
E eis-no no cimo do burgo, onde mora: o Castelo. Classificado como Monumento Nacional em 1922, já data de 1291. Outrora integrado no sistema defensivo beirão, para proteger o território de possíveis investidas inimigas, hoje é o ex-libris e ponto de passagem obrigatória da aldeia de Linhares.
Antes de se iniciar o castelo, sobre a imponente formação rochosa onde assenta, há uma levada de água onde as mulheres lavam a roupa com sabão usando, depois, as rochas do castelo para a estender ao sol e ali corar. Nos dia de hoje isto ainda acontece assim.
Passamos o primeiro arco de entrada e, se formos com atenção, podemos ver as inscrições na pedra. Na altura cada pedreiro tinha o seu símbolo, na maior parte dos casos a inicial do seu nome, ao colocar a pedra marcava-a e assim era pago o seu salário, em função do número de pedras que tivessem sido colocadas pelas suas mãos.
Subimos à torre para ver o seu relógio, movido a pesos de pedra que fazem tocar o sino a todas as horas e meias horas. A expressão ‘dar corda ao relógio’ continua a ser aqui aplicada e lembrada, todos os dias, a cada hora, a cada meia hora. Ali também descobrimos que casar de branco não é coisa prática nem dos tempos antigos, na verdade aqui casava-se com uma roupa – preta – que pudesse depois ser usada como traje domingueiro e, quando acusasse o desgaste do uso continuado, era mesmo usado para trabalhar, por isso, homens a trabalhar no campo de fato é uma imagem tão repetida nas fotos antigas, ainda a preto e branco.
À saída do castelo conhecemos a Dona Rosa Maria, a senhora que constrói as casas típicas de Linhares em miniatura, a Mia não lhes resistiu e trouxemos uma connosco, para lembrarmos Linhares sempre que quisermos.
Mas não é só do seu passado e da sua história que Linhares se faz, quem gostar de dar corda às pernas pode aproveitar os vários trilhos da aldeia. Foi assim que iniciámos o nosso domingo, pela manhãzinha, com o Trilho das ladeiras, um percurso de pequena rota, de 4Km, com a duração de 1h30, à qual, sabíamos de antemão, não respeitaríamos com o par de pés pequeninos que trazemos sempre connosco e sem a pressa de um relógio ditador.
Começamos por um carreteiro que se esconde por detrás do castelo, aí vemos os vidoeiros, e os seus distintos troncos bancos, depois de atravessámos a estrada de acesso à aldeia abrem-se-nos caminhos de terra que nos levam aos campos de cultivo. As oliveiras acompanham-nos pelo lado direito grande parte do caminho. Paramos para ouvir aquela que parecia ser a árvore-mãe do trilho, encostamos-lhe os ouvidos, mais à frente partilhámos uma maça, que apanhámos directamente da macieira, tocámos – com cuidado – os ouriços que os castanheiros tinham libertado e espalhado pelo chão, para espreitarmos as castanhas que traziam, apanhámos bolotas e ainda olhámos o céu, mas os milhafres-reais e os falcões peneireiros deveriam estar envergonhados e deixaram-nos apenas imaginá-los, asas abertas, lá bem alto.
A roupa estendida, as molas coloridas, o tanque da Dona Olivia e o seu tapete, que a Mia esfrega com toda a energia que consegue por nas duas mãos pequenas que traz. O senhor da casa de portadas verdes, que espreita puxado do seu cadeirão pelas vozes coloridas das nossas crianças a brincar. A vontade de fazer mover penedos e os carros carregados de lenha, a lembrar que o frio pode chegar mais tarde, mas quando vier será em força e rigor. As senhoras que mantém a tradição e, neste domingo de manhã em que por lá estivemos (como imagino o façam todos os domingos), trazem o seu traje domingueiro, quem sabe o mesmo com que disseram o ‘sim’, na igreja da Nossa Senhora da Assunção, no domingo mais especial do seu tempo de moças.
– Era queimar-lhes as mãos. – Ouvi-as dizer, enquanto olhavam para o preto que agora substitui o verde que costumava encher-lhes os olhos. Mas a garra com que o diziam leva-me a acreditar que são capazes de ‘pintar’ com as próprias mãos aquele chão e viver tempo suficiente para o ver verde, de novo.
E é sobre isto que vos falaremos no próximo post, sobre estas marcas dos fogos, e sobre a como a Menina Mundo o vê, interpreta e a solução que, na inocência, encontra.
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Foi com uma enorme honra que recebemos o convite das Aldeias Históricas de Portugal para participar nas talk integradas no Explorer 3.0, uma das iniciativas que acrescem a todo o património histórico, cultural e natural que mais do que justificam uma visita ao interior de Portugal.
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Onde ficar:
Inatel era casa dos Corte Real.
Morada: Largo da Misericórdia, 6360-080 Linhares da Beira
Tel: +351 271 776 081
Fax: +351 271 776 082
E-mail: inatel.linhares@inatel.pt
Onde Comer:
– Restaurante Taberna do Alcaide
Morada: Rua Direita – Linhares da Beira – Celorico da Beira
Tel: 964 890 804
Email: geral@tabernadoalcaide.pt
–Restaurante Cova Da Lopa
Morada: Largo da Igreja, 6360-080 Linhares da Beira
Telefone: 914224533
Muitos Parabéns pelo artigo.
Ele demonstra que Portugal é muito mais que Lisboa e Porto, com milhares de turistas em cada esquina, Portugal têm muito mais para desvendar e Linhas da Beira é um desses exemplos, pena que muitos de nós ( como Português ), não “exploramos” o pais como devíamos.
Monsanto é outra aldeia a não perderem em Portugal…
Obrigado.
Hugo Gonçalves
https://walkborder.com/pt-pt/
un reportaje muy detallado con muy buenas fotos