Hoje vi o meu avô num rosto malaio


avo_david

Aqui tão longe, no noroeste da Malásia, vi o meu avô.  Estava sentado mesmo atrás de mim, e eu deixei-me olhar para trás – para ele e para o tempo – e regressei às minhas memórias do meu avô. Reconheci-o. Trazia o mesmo olhar de quem observa lá no fundo, de quem conhece tudo há anos. De quem sabe a vida de cor. Aqui tão longe que estou e vi o meu avô. Estava ali sentado, como o meu avô se senta, reconheci-o na postura: os braços cansados pousados de cada lado da cadeira e de cada braço uma mão suspensa, no seu próprio peso, em direcção ao chão.

Há um ano também vi o meu avô, deitado numa cama de hospital, vi-o como ele nunca quis ser visto, como eu nunca o quis ver. Pela primeira vez trazia os olhos cheios de vazio, a boca vazia de palavras, as pernas e os braços presos na ausência de movimentos. E ouvi, dos médicos e enfermeiros, tudo o que não queria ouvir; disseram que o meu avô ia morrer – há um ano atrás. Chorei. Fizeram-me despedir dele, nessa cama de hospital. Chorei.

Enquanto ele lá estava, a sua casa, onde vivi quando era menina e adolescente, estava vazia pelo vazio deixado pelo meu avô, que já lá não estava; pelo vazio deixado pelo cadeirão do avô, que já não o tinha sentado. Era, agora, uma casa vazia: a casa que me habituei a ver cheia a cada consoada; vazia de gente, vazia do avô, vazia de vida – cheia de móveis e tapetes. Havia até um vazio deixado pelo vazio anterior, a cada passo dado dentro dessa casa, as pernas sentiam-se mais pesadas, com o peso do vazio que iam acumulando. E era a avó quem mais o sentia.

Mas ele sempre foi um homem forte e os olhos começaram a mexer, mas não lhe saiam palavras, apenas sons que mal entendíamos mas sabíamos – quem o conhece – exactamente o que ele queria: ele não queria estar ali. Depois, as palavras foram saindo, mas as pernas não seguravam o corpo. Depois, surgiram os nomes e já pouco importava se ele nos trocava e confundia os rostos: ele estava a falar. E estavam, à volta dessa cama, olhos e mãos que não se viam, que não se tocavam há demasiado tempo. Ele sabia-o. Eu sei-o. Depois, ainda mal andava mas regressou a casa.

E uns dias antes de iniciarmos esta aventura sopramos juntos as velas dos seus 80 anos. Passou um ano e eu digo: o meu avô está vivo, em casa, sentado na sua cadeira, ou debruçado no parapeito da janela, a fumar o seu cigarro. Está vivo. Está vivo lá e está vivo aqui, tão vivo que o vejo e o lembro em cada traço deste rosto malaio, que eu nunca havia visto, até hoje.

Não sei se é do rosto se são as saudades que repetem, neste rosto, as feições que me são tão queridas. Sei que isto me lembra que trazemos connosco os que nos ocupam o coração. E no almoço de hoje, nesta economy rice, o meu avô sentou-se à mesa connosco. E a Mia também o viu e também lhe sorriu.

Espero que sopremos de novo as velas, juntos: as tuas velas dos 81 anos que farás neste setembro de 2016, avô David.


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6 thoughts on “Hoje vi o meu avô num rosto malaio

  • Raquel Silva

    São estranhos esses reconhecimentos, estamos longe e de repente vemos quem amámos numa outra pessoa, os gestos são iguais, o sorriso igual, a voz igual, mas é outra pessoa. Quase que temos vontade de a abraçar, gostamos logo de quem se assemelha aqueles que amamos.
    Já tive essa experiência, não é comum, na altura ficamos perplexos, quase que temos vontade de lhe chamar pelo nome, a ver se se reconhece.
    Fico feliz pelo avô David ter escolhido viver, não há nada pior de quem vaticina e dar por garantido a morte, há tanta força dentro de nós, que podemos superar sempre o insuperável.
    Espero que gostem da Malásia, tenho um amigo holandês que entrega e conduz barcos pelo mundo ( um pirata com bom coração 🙂 ) que já conhece o mundo todo e nada o fascina mais que a Malasia e a Indonésia.
    Beijinhos grandes***

    • Miriam Post author

      É verdade, nunca o tinha pensado assim, mas é verdade, gostamos – assim que os vemos – daqueles que nos lembram os que amamos. Eu disse-lhe, usando os meus melhores gestos, por não havia língua partilhada que nos ajudasse.
      Estamos a ter uma experiência maravilhosa aqui, em breve contaremos, mas a Malásia está a surpreender-nos e a encantar-nos.
      Muitos beijinhos.

  • Anabela Magalhães

    Neste texto cheio de sentimento e um amor tão profundo só posso pedir que possas soprar as velas dos 81 anos do teu avô. Fico aqui a pedir, e a acreditar, que isso vai acontecer. Um beijo enorme minha família mundo!